Chá Comigo, Podcast de Tsering Paldron
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O novo realismo
Uma das nossas grandes desculpas para permanecermos de coração fechado – e inevitavelmente infelizes – é que os seres humanos são maus por natureza. Damos-lhes a mão e eles querem o braço, como dizia a minha mãe... Além disso, basta olhar para a história... E, como se não bastasse, a nossa experiência confirma-o. Então, como podemos confiar nos seres mais cruéis e egoístas que existem?
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Uma das nossas grandes desculpas para permanecermos de coração fechado – e inevitavelmente infelizes – é que os seres humanos são maus por natureza. Damos-lhes a mão e eles querem o braço, como dizia a minha mãe... Além disso, basta olhar para a história... E, como se não bastasse, a nossa experiência confirma-o. Então, como podemos confiar nos seres mais cruéis e egoístas que existem?
Como já deve saber, um dos mais importantes pontos de vista do Budismo é que todos os seres são, por natureza, bondosos e compassivos. Mas, devido a um malentendido fundamental na sua maneira de percecionar o mundo, manifestam todos estes comportamentos contranatura que nós bem conhecemos.
À primeira vista, esta maneira de ver pode parecer ingénua, talvez vinda de uma outra época em que as pessoas não eram tão más, ou sustentada por monges ou idealistas sonhadores que vivem à margem da sociedade e não têm de enfrentar os seres perversos com que nós temos de conviver. Em suma, uma utopia otimista, pouco prática e, até, perigosa.
Por isso, quando ouvi falar de um livro chamado HumanKind, a Hopeful History fiquei interessada. O título da versão inglesa é um elegante jogo de palavras entre “humankind” humanidade e human kind – humano bondoso - que é intraduzível em português. A versão portuguesa, publicada em Julho do ano passado, chama-se Humanidade, uma história de esperança.
O autor, Rutger Bregman é holandês, historiador, escritor e um dos jovens pensadores europeus de maior destaque. E a tese dele é radical: no fundo, a maior parte das pessoas é boa.
O interessante aqui, além do facto de haver uma voz como esta num mundo em que todas as narrativas apontam para o contrário, é que ele apresenta provas científicas de que a ideia que temos da nossa própria espécie não é exata.
O livro começa com um exemplo desta falta de autoestima, por assim dizer. Tom Postmes, professor de psicologia social na Universidade de Groningen, na Holanda, há anos que faz a mesma pergunta aos seus alunos.
Imaginem um avião que, ao fazer uma aterragem de emergência se parte em três. Com a cabine a encher-se de fumo, toda a gente quer sair dali o mais depressa possível. O que acontece?
No planeta A os passageiros voltam-se para o vizinho e perguntam se está bem. Os mais aptos ajudam aqueles que precisam de ajuda a sair primeiro. Vê-se pessoas dispostas a dar a vida para salvar perfeitos desconhecidos.
No planeta B, é cada um por si. O pânico é generalizado. Toda a gente se empurra e os mais fracos são esmagados.
A pergunta: Em que planeta vivemos? 97% das pessoas responde no planeta B. Mas a realidade é quase sempre o planeta A.
Curiosamente, apesar dos meus longos anos de estudo, prática e ensino do Budismo, até eu hesitaria na resposta...
Mas Bregman acumula os exemplos, os números, as provas. Enquanto seres humanos, temos uma aversão natural pela violência e o ato de matar um outro ser humano é-nos extremamente penoso.
Porém, se dermos crédito às notícias com que somos bombardeados diariamente (isto se as ouvirmos) a narrativa de um mundo horrível, onde as coisas estão cada vez pior, onde os seres humanos são cada vez mais descarados e têm cada vez menos valores continuará a imprimir-se na nossa mente.
Parece haver um pressuposto que se colocarmos uma arma nas mãos de qualquer ser humano, ele se torna num assassino. Ora a realidade é bem diferente. A maior parte dos soldados é alistado à força e volta da guerra destruído de toda a violência que foi obrigado a presenciar e em que participou.
Ainda mais estranho é que parece haver provas de que a maioria dos soldados não chega a disparar. Isto, claro, se não forem propositadamente humilhados, treinados, condicionados, e até drogados para se encontrarem num estado de extrema agressão antes dos combates.
Um aspeto que chamou a minha atenção foi que ele cita vários exemplos, em que as pessoas são levadas a cometer ações cruéis e reprováveis, que normalmente seriam incapazes de cometer, quando lhes é incutida a ideia de que o estão a fazer por “uma boa causa”. A ideia de que o objetivo é nobre e serve um bem maior, tal como a humanidade ou a ciência, permite-lhes vencer os escrúpulos que sentem em relação a ações eticamente questionáveis.
Estamos naturalmente programados para a solidariedade e a violência é antinatura. Sentimos uma empatia natural pelos outros seres humanos... sobretudo se forem próximos, parentes, amigos, vizinhos. E se se parecerem connosco. Mas é aqui que a porca torce o rabo: a mesma força que nos torna empáticos e compassivos para com uns, torna-nos indiferentes ou mesmo adversos aos outros.
Estranhamente há sinais de que a força que move os soldados, e mesmo os terroristas, até atos de total sacrifício pessoal, é menos o patriotismo ou a ideologia do que a camaradagem e o sentimento de fraternidade. Soldados que arriscam a vida para salvar companheiros é comum. O revés da medalha é que, movidos por esses belos sentimentos, também são capazes de atos cruéis e violentos para com os não fazem parte da irmandade.
Assim se explica a necessidade do condicionamento. O inimigo é repetidamente desumanizado, apelidado de verme, demonizado. Não tem direito a alma, é visto como totalmente diferente, inferior, intrinsecamente mau, pelo que destruí-lo é um favor para a humanidade. E para que as coisas se mantenham assim, temos de mantê-lo à distância, física ou emocional.
Ao longo destes últimos 25 anos tenho participado em inúmeros encontros inter-religiosos. Confesso que, inicialmente, as minhas dúvidas sobre a sua utilidade eram grandes. Parecia-me uma espécie de campanha em que cada um puxava a brasa à sua sardinha, nada interessado em ouvir os outros mas apenas em aproveitar o seu “tempo de antena”. Mas ao fim de um tempo entendi que, tanto para os oradores, como para os participantes, o mais importante era reconhecer que existiam praticantes de valor e pessoas de qualidade em outras vertentes religiosas. E de chegar mais perto delas.
Mas, se pensarmos no que fazemos quando nos fixamos numa pessoa e a tornamos num inimigo, é a mesma coisa! Sem nos darmos conta, também nos condicionamos, às vezes diariamente, para a demonizar. Tudo o que corre mal na nossa vida, em última análise, é por causa dela, ela tem todos os defeitos possíveis e chegamos ao ponto de ficar maldispostos só de ouvir o seu nome.
Lembro-me de ter lido um testemunho de um soldado que, no campo de batalha, deu de caras com um soldado inimigo. Os seus olhares cruzaram-se. E expressavam o mesmo desespero, o mesmo medo, a mesma dor. Naquele instante reconheceram-se como seres humanos idênticos, circunstancialmente colocados em lados opostos daquele conflito, e toda a agressão desapareceu.
Nos conflitos atuais, é muito raro soldados de campos adversos chegarem tão próximo. A maior parte das mortes faz-se, no mínimo, à distância de um tiro, quando não é de um míssil – e consequentemente é quase “teórica”. Matar alguém, olhos nos olhos não está ao alcance de todos.
Para suplantar a nossa aversão natural à violência e a nossa empatia, a distância é essencial. As discriminações que fazemos e que mantêm certos grupos de pessoas “à distância”, sejam elas baseadas na cor da pele, na orientação sexual, na fé religiosa ou em outra qualquer, e que são pretexto para muita violência e crueldade, desapareceriam se chegássemos mais perto dessas pessoas. Porque deixariam de ser brancas ou pretas, heterossexuais ou homossexuais para serem o João, o António e a Maria.
Há, porém, um contra-argumento espinhoso: se somos assim tão bons, por natureza, como explicar os monstros que, ao longo da história, se encontraram em posições de poder e foram e continuam a ser responsáveis por banhos de sangue e monstruosidades? Ao que parece o poder corrompe e quanto maior o poder, maior a corrupção.
Aqui também, diversos estudos demonstram que as pessoas poderosas se sentem mais distantes das outras e perdem a capacidade de “espelhar” os sentimentos alheios, desenvolvendo uma atitude muito mais cínica. Cegos pelo egocentrismo, arrogantes e incapazes de sentir vergonha, sentem-se superiores e justificados para explorarem e controlarem as “plebes” ignorantes.
O que é interessante constatar é que apesar dos muitos exemplos demonstrando que a maior parte dos seres humanos é fundamentalmente boa, a atitude cínica que consiste em acreditar no oposto está profundamente enraizada em nós. Se experimentar falar nisto aos seus amigos, o mais provável é que lhe contraponham mil e um argumentos.
A ideia da iniquidade da natureza humana é-nos vendida e reforçada diariamente. Ela, na realidade, serve os interesses dos poderosos e dos políticos e cria uma sociedade em que a desconfiança, a segregação e a desigualdade prevalecem. Numa sociedade dessas, são precisos líderes fortes, sistemas de repressão para manterem as pessoas na ordem. Primeiro cava-se a distância entre os grupos, depois entre as pessoas, e a a depressão e a falta de sentido instala-se.
Se lhe dissessem que existia um hospital onde os cuidados de saúde eram gratuitos e onde cada um podia contribuir com o que quisesse, qual seria a sua primeira ideia? Um hospital desses é uma utopia simpática, mas impraticável. Se é gratuito, ninguém vai pagar!
Existe um hospital assim na Índia. Foi fundado em 1976 por um cirurgião oftalmológico, o Dr. Venkataswamy, ou Dr. V, como era chamado, com o objetivo de restituir a visão a doentes sofrendo de cataratas. Começou com 11 camas. Hoje tem 14 hospitais, 6 centros de consultas externas, 94 unidades de cuidados primários no Sul da índia. Desde a sua fundação, Aravind já realizou 7,8 milhões de operações. Sempre na mesma base: quem pode paga, quem não pode – ou não quer – não paga.
O Aravind Eye Care System ganhou o prémio Fundação Champalimaud para a visão em 2007. Se quiser saber mais sobre este prodígio – nem que seja para ter contra-argumentos para os seus amigos mais céticos – pode pesquisar na net. Tenho também um pequeno artigo no meu blog, chamado A economia da Compaixão onde encontra um resumo desta história comovente e inspiradora.
Não sei se já ouviu falar no Efeito Pigmalião. Inúmeras experiências demonstram que se tratarmos crianças normais como se fossem super dotadas, os seus resultados escolares melhoram. As primeiras experiências, realizadas por um jovem psicólogo americano, Bob Rosenthal, foram conduzidas em ratos de laboratório. Rosenthal disse aos seus alunos que um determinado grupo de ratos, exatamente iguais aos outros, pertencia a uma raça mais inteligente.
Sem se darem conta, os alunos trataram os ratos supostamente mais inteligentes de maneira diferente, dando-lhes um tratamento preferencial. Este tratamento modificou o comportamento dos ratos e melhorou os seus resultados em diversos testes de inteligência.
Experiências semelhantes foram conduzidas com crianças, com os mesmos resultados – quando tratadas com a suposição de terem um QI mais elevado, os miúdos subiam os seus resultados escolares e até a cotação em testes de inteligência. Ele chamou então a isto o efeito Pigmalião.
Infelizmente, o efeito contrário também existe e tem nome. Chama-se o efeito Golem. A pesquisa é mais restrita, porque como é óbvio levanta sérias questões éticas, mas é também fácil de observar: quando alguém é considerado incapaz, tratado como inferior, etc. essa pessoa acaba por comportar-se dessa forma e perder as suas capacidades.
Certamente já percebeu onde quero chegar. Se a ideia generalizada é que as pessoas são desonestas, más e violentas, isto pode funcionar como uma profecia autorealizável. Se o Dr. V. tivesse partido da ideia de que as pessoas são egoístas e interesseiras e apenas velam pelos seus interesses, Aravind nunca teria existido. Mas, porque apostou na ideia de que as pessoas seriam generosas, Aravind existe e tem os resultados espantosos de que já falamos.
Não pretendo dizer que todos os seres são modelos de amor e compaixão e que devamos confiar em toda a gente. Temos de ter discernimento. Mas a visão negativa e generalizada da humanidade não é a melhor maneira de nos mudarmos a nós e de mudarmos o mundo.
Como tantas vezes na história, as mudanças vêm das pessoas que têm a coragem de ir contra a corrente. Há exemplos de que os seres humanos se podem comportar de maneira muito diferente daquela que imaginamos, e há empresários, professores, diretores de prisão, escritores e todo o tipo de pessoas que tiveram a coragem de uma abordagem diferente. Com resultados espantosos. Daqueles que enchem o coração.
Eu sei que vivemos tempos conturbados. Eu sei que tudo isto parece utópico. Mas o mundo que cada um de nós experimenta é o mundo que cria com a sua mente. Se nos conformarmos ao que nos é proposto, nunca haverá mudança. Este é um novo realismo para um novo paradigma. A revolução começa hoje. Aqui. Connosco.