Chá Comigo, Podcast de Tsering Paldron
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Amor incondicional
Se for como eu, quando ouve a expressão Amor Incondicional, fica um pouco perplexo. Por um lado, soa bem, mas ao mesmo tempo, assusta. Admirável sem dúvida, mas tão inatingível, tão sobre-humano, que não sei se é realista. Então no chá de hoje queria partilhar consigo algumas reflexões sobre o assunto.
Veja a minha página: http://www.tseringpaldron.com/pt
Nos últimos chás conversámos sobre as quatro atitudes ilimitadas que fazem parte do treino Budista para o desenvolvimento do Nobre Coração. Amor, compaixão e alegria não são novos para nós: são sentimentos que todos conhecemos, mas que reservamos para algumas pessoas na nossa vida. Por isso, os textos reconhecem que, o primeiro passo no nosso treino tem de ser o desenvolvimento da imparcialidade. Vale a pena perceber porquê.
O que conhecemos da nossa mente é apenas a camada superficial. O pensamento discursivo, o fluxo dos pensamentos que, para algumas pessoas é como uma voz na cabeça que raramente se cala. E quando não aprofundamos, isso é tudo o que conhecemos.
Por detrás dessa camada há várias outras. Mas, para simplificar, digamos que existe outra, muito mais profunda, sempre presente, mas à qual não prestamos atenção. Podemos comparar essa camada a um ecrã sobre o qual se projeta um filme. As imagens, as cores, as formas e até o próprio movimento são tão fascinantes que não notamos o ecrã, muito embora sem ele não houvesse filme.
Assim, o objetivo da meditação é duplo: por um lado trata-se de acalmarmos a mente, desacelerando o ritmo dos pensamentos e habituando-nos a pousar-nos sobre um objeto de referência, seja a respiração, as sensações, ou outro qualquer. Como no exemplo dado pelo Buda, quando deixamos pousar água turva, as partículas em suspensão caem no fundo e a água volta a ser transparente da mesma forma, quando a mente é deixada no seu estado natural é então que vemos tudo com clareza.
Contrariamente ao que pensamos quando ouvimos a expressão “estado natural” da mente, não nos referimos ao turbilhão habitual de pensamentos, sentimentos e emoções – esse é o estado habitual -, mas sim à natureza profunda da mente. Há milhares de páginas na literatura budista que descrevem as qualidades extraordinárias da mente profunda, mas para já, e para a maioria de nós, talvez ainda não consigamos verificar por nós mesmos a veracidade destas afirmações. No entanto – e esta é uma das coisas fundamentais no Budismo – com o treino apropriado e algum tempo, qualquer um de nós poderá descobri-las por si mesmo.
Os textos descrevem a nossa mente natural como a união da claridade – não no sentido literal de uma luz, mas como clareza cognitiva, capacidade de conhecer, de discernir e uma energia poderosa, calorosa, às vezes referida como ThukDje, ou Nobre Coração. Acho que a expressão insustentável ternura dá-nos um pequeno sabor daquilo de que estamos a falar.
Essa energia é aquilo de que somos feitos, a própria substância do nosso ser. Claro que estou a usar a palavra substância de forma livre, porque não é algo substancial. E está sempre connosco, escondida como dizem os textos, como um tesouro debaixo da cama de um pobre que dorme sobre ele sem saber.
Sendo a própria substância de que somos feitos, essa energia é incondicional, ou seja, não depende de qualquer circunstância para se manifestar, é o que nós somos. Embora seja difícil usar palavras para falar de algo que está para além do conceptual, podíamos dizer que essa energia se manifesta como amor, compaixão e alegria incondicionais e, obviamente, imparciais.
Assim, quando nos treinamos nos quatro sentimentos ilimitados estamos a tentar replicar, de forma condicionada, quatro sentimentos incondicionais.
Claro que quando falamos do amor incondicional, em termos humanos, não falamos da mesma coisa. Porque se eu amar incondicionalmente uma pessoa, esse amor já é condicional, uma vez que não abrange toda a gente. É o treino na imparcialidade que nos vai aproximando da incondicionalidade da nossa natureza.
Há aqui uma coisa que é fundamental entendermos e que nem sempre é óbvia para toda a gente: a nossa atitude interior de bem-querer deve ser o mais incondicional e imparcial que conseguirmos, mas isso não significa que, no momento de agirmos, devamos submeter-nos aos caprichos ou más intenções alheias.
Lembro-me de uma entrevista ao Dalai Lama em que alguém lhe perguntava: se fosse ameaçado por alguém e estivesse em perigo de vida, se tivesse uma arma, dispararia contra a pessoa? Ao que o Dalai Lama respondeu, sim disparava para as pernas, e quando tivesse a certeza de que a pessoa estava neutralizada, aproximava-me para ver se precisava de ajuda.
Acho que este exemplo nos ajuda a compreender a ideia. Se a situação o exigir, podemos defender-nos da maneira apropriada, e não excessiva como seria, por exemplo, disparar a matar quando apenas temos de neutralizar o perigo. Mas, ao mesmo tempo, não ficamos zangados com a pessoa, nem perdemos a compaixão e o bem-querer.
Se o amor e a compaixão imparciais são a base dos nossos sentimentos em relação aos outros, o bom-senso e o equilíbrio têm de guiar as nossas ações.
Todos sabemos como nós, seres humanos, podemos estar tão totalmente desequilibrados e desconectados do nosso Nobre Coração que entramos numa espiral de autodestruição ou de violência física ou psicológica. Enquanto budistas, confirmados, aprendizes ou simpatizantes, temos tendência para sermos mais empáticos e naturalmente mais abertos do que muitas outras pessoas, pelo que podemos ser presas mais fáceis para pessoas desequilibradas.
É frequente as pessoas ficarem confundidas sobre a melhor atitude a ter quando ouvem alguns dos conselhos budistas como, por exemplo, considerar as pessoas que nos prejudicam como nossos mestres, ou em qualquer conflito dar a vitória ao outro. É nessas ocasiões que é muito importante percebermos bem a diferença entre a atitude interior de bem-querer e a forma de agir nessas situações desafiantes.
Usando estes dois exemplos, considerar as pessoas que nos prejudicam como nossos mestres não significa que tenhamos de as deixar magoar-nos ou permitir que nos desrespeitem, mas sim que compreendemos como esse tipo de situações nos desafia e nos obriga a trabalhar sobre as nossas emoções e a amadurecer. O argumento é usado para contrariar a raiva ou o desejo de vingança que poderíamos sentir, percebendo o valor escondido na dificuldade e não para deixarmos a pessoa espezinhar-nos.
No caso de dar a vitória ao outro num conflito, tem a ver com evitarmos situações em que discutimos apenas para termos a última palavra. Nestes casos, é comum as pessoas quererem absolutamente ter razão, mesmo quando isso não tem a menor importância prática.
Mas também neste caso, o conselho não é absoluto. Interiormente, devemos abrir mão do desejo de ter razão, mas exteriormente temos de agir conforme a necessidade: em coisas sem importância, não vale a pena discutir durante horas apenas para ter a última palavra mas, se for algo de vital, em que a outra pessoa poderá cometer um erro com consequências indesejáveis para os outros e para si própria, será preferível mantermos a nossa posição, tanto quanto possível.
Quero frisar bem que este tipo de conselhos que encontramos nos textos budistas se referem ao desenvolvimento da nossa atitude interior de bem-querer e não à maneira de reagir nas diferentes situações. As ações concretas que iremos realizar dependem de inúmeros fatores tais como a nossa situação, a relação que temos com a outra ou as outras pessoas envolvidas, a cultura, o momento, etc.
Nessa mesma ordem de ideias, embora o nosso amor e a nossa compaixão sejam imparciais e o mais incondicionais possível, temos de ter bom-senso nas nossas ações. Um texto de Patrul Rinpoche, um mestre tibetano do século IXX, chamado “Nove considerações e critérios para ajudar os seres” dá-nos dicas sobre como aplicar tudo isto na vida real.
Os tibetanos são muito pragmáticos. Assim, o texto considera várias hipóteses de escolhas difíceis.
1. Se algo que queremos fazer é mau para nós e para os outros. Não fazemos.
2. Se algo é bom para nós e para os outros. Fazemos.
3. Se algo é bom para nós mas faz mal aos outros, evitamos.
4. Se algo é bom para os outros, mas prejudica-nos, temos de ponderar.
As considerações a ter neste último caso relevam do bom-senso. Se algo for muito bom para alguém, se realmente ajudar essa pessoa, e se o risco ou o prejuízo que me causa não for muito grande, desde que eu esteja disposta a ele, então devo agir.
Se o prejuízo for do mesmo grau de importância que o benefício, tenho de agir de acordo com as minhas circunstâncias do momento.
Se o prejuízo que me causa for muito maior do que o benefício que tem para a outra pessoa, especialmente se se tratar de algo que afete a saúde, os meios de subsistência ou a prática espiritual, não devo agir
Esta última consideração é muito importante, porque é frequente as pessoas ultrapassarem esta linha em relação aos entes queridos, indo muito para além daquilo que seria equilibrado. Por um lado, podemos ver nesses atos a manifestação do altruísmo e do amor, mas por outro, às vezes, tem mais a ver com apego e não é tão positivo como parece.
Há situações dessas de grande desequilíbrio que são verdadeiramente tóxicas. Pessoas que se matam a trabalhar ou se endividam para sustentar um próximo com problemas de dependência de álcool, droga ou jogo, por exemplo. Em casos destes, nem sequer se pode pretender que se está realmente a ajudar a outra pessoa – a não ser a autodestruir-se. São situações em que todos perdem e nem se pode falar de benefício para quem quer que seja.
Por isso temos de tentar olhar bem para as situações da nossa vida em que estamos a sacrificar o nosso bem-estar e tentar avaliar se o que estamos a fazer está de facto a ajudar, tendo em mente que só podemos ajudar os outros a ajudarem-se a si mesmos e que sustentar alguém que não quer mudar poderá não só, não valer a pena como ser prejudicial para a pessoa.
Eu sei que as coisas nem sempre são assim tão lineares e que essas situações tóxicas são difíceis de reconhecer, e mais ainda de resolver. Mas, às vezes, para vermos as coisas claramente, temos de falar em termos simplistas – branco e preto. Sem perder de vista que, entre um e outro, há inúmeras nuances de cinzento.
Às vezes, aquilo que tomamos por bondade ou paciência para com as outras pessoas é meramente preguiça de entrar em conflito. Porque contrariar alguém requer energia e envolvimento, habilidade e diplomacia. Então, parece-nos mais fácil a curto prazo deixar correr. Em situações pontuais até pode resolver. Mas em situações que se repetem, o confronto acabará por surgir e, frequentemente, na pior altura e da pior maneira, quando já estamos saturados.
Temos de compreender que o essencial é desenvolvermos e cultivarmos a atitude interior certa. Um bem-querer o mais imparcial possível. É como desejar bem a todos por defeito – e isso faz-se através da meditação nos quatro pensamentos ilimitados.
Uma vez que essa atitude tiver começado a criar raízes na nossa maneira de ser, são as situações da vida que nos colocam os desafios, aprofundam o treino, e nos permitem mudar as nossas reações. Mas se tivermos a atitude interior bem sintonizada, a forma concreta com que reagimos às situações será sempre apropriada.
Mas, claro não nos podemos esquecer de que este é um processo de aprendizagem e de que não adianta ficarmos zangados connosco quando nos apercebemos de que reagimos mal. Tentamos simplesmente perceber como poderíamos ter reagido melhor e pensamos que da próxima vez já teremos mais experiência.
A vida é uma aprendizagem constante e é isso que faz com que viver seja tão apaixonante. Fique bem