Chá Comigo, Podcast de Tsering Paldron
Chá Comigo, Podcast de Tsering Paldron
Amigos, estranhos e semelhantes
No último chá, e certamente em alguns outros antes dele, falei dos quatro pensamentos ilimitados – o amor, a compaixão, a alegria e a imparcialidade. Eles são os pilares do método budista para desenvolver/reencontrar o nosso Nobre Coração. Entretanto, apercebi-me de que já falei bastante do amor, da compaixão e, no último chá, da alegria e achei que estava na hora de conversarmos sobre a imparcialidade.
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É comum as pessoas ficarem um pouco perplexas com a ideia da imparcialidade. Estamos tão habituados a funcionar com base no apego e na aversão que a ideia tratar todos da mesma forma parece-se, aos nossos olhos, muito mais com a indiferença do que com a bondade universal.
Aquilo que tomamos por amor, está tão misturado com apego, como aquilo que tomamos por compaixão está misturada com empatia de grupo. Num caso, como no outro, os nossos sentimentos são manifestamente diferentes em relação aos que fazem parte do nosso círculo e aos outros. E o tamanho dessa diferença é o que faz a diferença. Porque, na verdade, quanto menor for o círculo dos “nossos” e mais intensa for a parcialidade, mais os outros nos são indiferentes e mesmo suspeitos.
Relembremos só, por um instante, as diferenças entre amor e apego. Do ponto de vista Budista, e humano na realidade, o amor é o desejo não-interesseiro de que alguém seja feliz, esteja bem. Um generoso querer bem ao outro, centrado no seu bem-estar. Ao inverso, o apego não tem nada de generoso: ele está centrado no bem-estar que o outro nos proporciona. Quando consideramos alguém como “nosso” e fazemos depender a nossa segurança, felicidade e sentido de identidade de uma outra pessoa, é aí que as coisas se complicam. Tornamo-nos tão ciosos dessa pessoa que parece que ela está no mundo para preencher a nossa vida. E ai dela se quiser ter vida própria, pensar por ela ou fazer algo com o qual não estejamos de acordo!
Claro que, enquanto humanos imperfeitos que somos, os dois sentimentos andam geralmente misturados e temos dificuldade em distinguir claramente um do outro. A questão é em que proporção queremos o bem do outro versus o nosso. E em caso de dúvida, o que privilegiamos: o nosso interesse ou o do outro?
No que respeita à compaixão, o desejo de aliviar ou libertar o outro do sofrimento, a parcialidade pode manifestar-se de forma extrema. Por um lado, estamos dispostos a atos realmente altruístas, sacrificando até a própria vida, por aqueles que nos são próximos. Qualquer problema, doença ou dificuldade que os nossos entes queridos enfrentem é mais dolorosa do que se nos acontecesse a nós. Porém, esta abnegação não é extensível aos que não estão dentro do nosso círculo.
Isto é algo que todos compreendemos e não é realmente um problema. O lado B deste tipo de compaixão, mais propriamente designado por empatia de grupo, é que o sentimento que nos leva a tais sacrifícios pode nascer de uma espécie de coesão tribal perante um inimigo comum. E, nesse caso, quanto mais intensa a empatia para com os sofrimentos dos “meus”, mais intenso o ódio pelos “outros”.
Ao longo da história temos visto como, para obter um forte sentimento de coesão social, não há nada como criar a imagem de um inimigo comum. Em tempos de guerra, por exemplo, as barreiras sociais e outras no seio de uma dada sociedade caem, e as pessoas sentem-se muito mais próximas e solidárias, todas unidas contra o inimigo.
Há dois anos atrás, no início da pandemia, vivemos um momento muito doloroso, mas ao mesmo tempo, muito inebriante: vimos as pessoas do mundo inteiro unirem-se, sentirem-se solidárias e entreajudarem-se, uma vez que o inimigo comum, desta vez, não era um outro ser humano, mas um vírus que nos atacava a todos, imparcialmente.
Aqui também, como no caso do amor, quanto mais ódio pelos inimigos, mais coesão e empatia para com os próximos, e vice-versa.
O caso da alegria não é diferente. Quando se apoia na parcialidade, alegramo-nos com as coisas boas que acontecem aos nossos entes queridos, aqueles que estão do nosso lado, mas não com as que acontecem aos outros. Já em relação aqueles de quem não gostamos, podemos mesmo chegar a alegrar-nos com as desgraças que lhes acontecem, pensando que tiveram o que mereciam.
Claro que um certo grau de parcialidade é compreensível, mas, para chegarmos ao ponto de motivar um ser humano para o ódio racial, social, étnico ou outro, é preciso fazer-lhe sentir que o outro não é como ele, é mau, é perverso, não é humano. Dar-lhe nomes de coisas repugnantes como “verme” e repetir “ad infinitum” as atrocidades de que é capaz. Assim, com uma eficaz lavagem ao cérebro, muito boa gente acabará por pensar que está a fazer um favor ao mundo ao eliminar aquela escória.
Um dos meus mestres tibetanos, o Ringu Tulku Rinpoche, uma vez explicou que, quando estava a aprender inglês, um dos conceitos com os quais esbarrava era o do uso da palavra “estranho” para designar um desconhecido. Até então eu nunca tinha reparado no quão revelador é. Um desconhecido é apenas uma pessoa que não conhecemos, já um estranho introduz uma noção de que esse desconhecido é esquisito, diferente. Em latim extraneu siginifica que é de fora, que não pertence à família e, por conseguinte, que não é de confiança.
A empatia natural que sentimos pelos outros está limitada àqueles que reconhecemos como semelhantes, como fazendo parte do mesmo grupo, mas não é ativada da mesma forma em relação aos outros. A boa notícia é que podemos aprender a estender essa capacidade, reconhecendo o outro como igual a nós.
Foi assim que, de repente estes dias, me veio à mente o termo “o meu semelhante”, tão usado no cristianismo. Certas pessoas terão porventura uma associação negativa com este termo, porém, quando o despimos de qualquer conotação, ele é excelente. Porque estabelece a base para o reconhecimento do outro como sendo igual a mim, indispensável para a empatia que poderá evoluir em compaixão.
O argumento budista para o cultivo da imparcialidade segue a sua própria lógica. Eu quero ser feliz e não quero sofrer; tal como eu, toda a gente quer ser feliz e não quer sofrer, logo, somos todos iguais nesse desejo. Assim, do ponto de vista de cada um de nós, esse desejo é perfeitamente legítimo e não há razão válida para que o bem-estar de alguém seja mais importante do que o de qualquer outra pessoa.
O que isto significa, na prática, é que não há razão para que o meu bem-estar seja obtido à custa do bem-estar alheio, nem que o bem-estar alheio seja obtido à custa do meu. Esta lógica é irrefutável, a aplicação nem sempre é fácil.
Porém a realidade é simples: aceitava que os interesses de outra pessoa fossem mais importantes do que os seus? Em contrapartida, a menos que seja completamente obtusa, qualquer pessoa aceita que os seus interesses sejam postos em plano de igualdade com os de uma outra.
A base do altruísmo budista é esta perspetiva objetiva e igualitária, que respeita o bem de todos. Por isso, em todas as decisões da vida, para nosso próprio bem, é aconselhável optarmos por aquilo que melhor preserva os interesses de todos.
Devido à noção errada de que o altruísmo é a negação dos nossos interesses, temos a impressão que o altruísmo é apenas opcional, apesar de ser politicamente correto, positivo e admirável. Muitos de nós consideram o altruísmo uma atitude de “boa vontade”, apropriada para seres destituídos de ambição material, vocacionados para o bem dos outros, mas contraproducente para os seres comuns que, na vida quotidiana, têm de assegurar a sua subsistência, educar os filhos, pagar as mensalidades da casa, etc.
A atitude altruísta de que aqui falamos é essencialmente a de um alargamento de visão. Em vez de pensarmos “eu”, pensamos “todos nós”: “Eu quero ser feliz e não quero sofrer”, transforma-se em “Todos queremos ser felizes e não queremos sofrer”; ou “Eu quero ser bem tratado” em “Todos queremos ser bem tratados”; ou ainda “Quero que os meus interesses sejam respeitados” em “Todos queremos que os nossos interesses sejam respeitados”, etc.
Nem sempre estamos cientes de que esta atitude, por ser realista e pragmática, nos simplifica a vida em vez de a complicar, tornando-a mais fácil e muito menos conflituosa. Pode parecer paradoxal, mas o altruísmo é, em primeiro lugar, bom para nós próprios: o facto de desejarmos o bem dos seres, pode não lhes trazer qualquer benefício mas, seguramente, faz-nos sentir muito melhor.
Agora, alguns de nós são naturalmente empáticos e compassivos e outros não. Independentemente do nosso ponto de partida, todos beneficiamos em cultivar esta qualidade humana. Então experimente este exercício:
Sempre que conhecer alguém novo, ou estiver com pessoas que já conhece, mas com quem não simpatiza, pode refletir sobre os cinco pontos que se seguem, procurando que não sejam apenas frases vazias. Olhe para a pessoa – discretamente – ou imagine-a na sua frente e pense:
Tal como eu, esta pessoa só quer ser feliz.
Tal como eu, esta pessoa quer evitar o sofrimento.
Tal como eu, esta pessoa já sentiu a tristeza, a solidão, o desespero.
Tal como eu, esta pessoa procura satisfazer as suas necessidades.
Tal como eu, esta pessoa comete erros e também faz coisas certas.
Repita este exercício as vezes necessárias, até sentir como é verdade em relação a qualquer pessoa, seja ela quem for. Treine-se onde quer que esteja, no local de trabalho, em família, nos transportes públicos ou mesmo enquanto vê televisão. Verá que ao fim de um tempo, a sua atitude em relação aos outros terá mudado.
Atualmente, fazemos uma grande diferença entre amigos e inimigos, entre próximos e desconhecidos. A intensidade e a natureza dos nossos sentimentos depende da forma como catalogamos as pessoas e esta às vezes não assenta sobre nada de muito substancial.
Uma vez que todos queremos ser felizes e não sofrer, seria lógico que procurássemos a companhia das pessoas que são fonte de bem-estar e evitássemos a das pessoas que nos fazem sofrer. Assim, de forma empírica, achamos que os amigos e próximos são aqueles que contribuem para a nossa felicidade e os inimigos aqueles que nos causam sofrimento. As coisas podem não ser bem assim.
Pegue numa folha de papel. Divida-a em três colunas. Pense em todas as pessoas que, ao longo da sua vida, mais contribuíram para que hoje seja a pessoa que é, as que mais o ajudaram a desenvolver as qualidades e as capacidades que hoje possui e as que mais influenciaram as suas opções principais. Do lado esquerdo da coluna escreva o nome das pessoas que o fizeram de forma carinhosa e do lado direito o das pessoas que o fizeram de forma conflituosa. Na coluna do meio escreva o nome das pessoas que o fizeram de forma indireta, sem jamais terem tido um contacto pessoal consigo ou então um contacto fortuito e passageiro como o que podemos ter com alguém que vemos uma vez numa paragem de autocarro.
Guarde essa folha e vá-a preenchendo com o passar dos dias. Pense bem no assunto e vá ao detalhe. Não se contente com três ou quatro nomes óbvios como o dos seus pais ou amigos, tente lembrar-se de todos.
Pegue noutra folha e faça também três colunas. Desta vez pense em todos aqueles que mais o fizeram sofrer. Na coluna da esquerda escreva o nome das pessoas que o fizeram sofrer por amor (ou deveríamos dizer apego?), na da direita as que o fizeram sofrer por conflito e na do meio as pessoas que o fizeram sofrer de forma indireta sem nunca o terem conhecido.
Uma vez mais reflita no assunto durante alguns dias até achar que se lembrou de toda a gente. No final, contemple os resultados.
Obviamente eles são diferentes para cada um de nós. Mas penso que muita gente chegará à conclusão de que, na lista dos que mais contribuíram para a sua felicidade, os vencedores são os que o fizeram através de conflitos e, na lista dos que mais nos fizeram sofrer, os vencedores são os que o fizeram em relações de amor. Em relação àqueles com os quais não tivemos contacto direto é provável que tenham tido alguma influência positiva em nós – como o podem ter artistas, pensadores ou pessoas que, de alguma forma nos inspiraram – mas menos provável que nos tenham alguma vez feito sofrer.
Os resultados deste teste são interessantes e, de certa forma, surpreendentes porque põem em causa a ideia feita de que os amigos são fonte de bem-estar e os inimigos fonte de sofrimento. Através dele podemos perceber que essa separação é ilusória e que os inimigos e, mesmo, os desconhecidos podem ser tão ou mais importantes na nossa vida do que os amigos.
Não nos esqueçamos ainda de que estas categorias não são estanques, que os amigos se transformam em inimigos e os inimigos em amigos e que, por conseguinte, não faz muito sentido adorar alguém e ver nele todas as qualidades para o detestar no dia seguinte e ver nele todos os defeitos. Se combinarmos esta constatação com a consciência de que todos eles ambicionam a felicidade e querem escapar ao sofrimento temos a base de imparcialidade sobre a qual assentar as nossas relações.
É importante percebermos que se trata de um treino, e que não se espera de nós que possamos amar os que nos prejudicam como se fossem nossos filhos, ao fim de algumas sessões de prática. Essa extraordinária capacidade de amor pode ser natural em alguns, ou resultar de um treino ou de uma visão religiosa e, embora todos possamos aspirar a ela, numa fase inicial, não podemos pretender alcançar um tal estado de um dia para o outro.
Muita gente acha a ideia de imparcialidade demasiado neutra. Têm a impressão de que vão ter de gostar de todas as pessoas da mesma maneira e que isso poderá anular o ódio, mas também o amor, reduzindo as relações a uma espécie de uniformidade desenxabida e fria em que todos nos são mais ou menos indiferentes e em que todo o brilho da vida se esmorece.
É óbvio que não se trata disso. Podemos conceber a imparcialidade como o relevo do terreno sobre o qual assentam as nossas relações. Neste momento, esse terreno não está aplanado. Há grandes desníveis pois, de certa forma, concedemos aos nossos amigos e próximos mais direito à felicidade do que aos outros. Cultivar a imparcialidade é como fazer uma terraplanagem: tiramos terra dos altos para colmatar os buracos até obtermos um terreno nivelado sobre o qual podemos edificar relações estáveis e sãs, baseadas no bem-querer e no respeito.
Nas relações que iremos edificar continuará a haver amizades e inimizades, mas elas deixam de ser razão para que reconheçamos, a uns, mais direito à felicidade do que aos outros. Haverá sempre pessoas mais próximas e outras mais distantes e continuará a haver amores e desamores, filhos, pais, colegas de trabalho e desconhecidos. Cultivar a imparcialidade não significa que tenhamos de ser íntimos com toda a gente, mas sim que reconhecemos a toda a gente o direito a ser feliz.
É importante ainda lembrar que o treino budista consiste em cultivar estes sentimentos “em teoria”, como uma forma de nos predispormos mais positivamente em relação aos outros. Treinamo-nos assim até que a imparcialidade do bem-querer a todos se transforme na nossa maneira de ser. E durante o processo, vamos aprendendo a aplicá-los nas diferentes situações do dia a dia, o que necessita discernimento, bom-senso e lucidez.
E pronto, a minha chávena está vazia e, embora ainda haja mais para dizer sobre o assunto, isso fica para outro encontro. Fique bem!